"Vida"- Ballet Stagium - foto: Emídio Luisi

quarta-feira, 27 de abril de 2016

Conto do Alter Ego III

Estavam mais uma vez assistindo a uma mesa de mais um congresso, juntos: mais uma desculpa para ficar sentado ao lado do outro, para esbarrarem os braços e sentirem suas peles. Ela pingava suores, mesmo em um ambiente gelado pelo novo ar-condicionado, reivindicado na greve. Quando ele fez algum comentário sobre o  assunto da mesa, ao pé do seu ouvido, ela não entendeu uma palavra: só conseguia imaginar o vapor da expiração dele aquecendo um dos seus mamilos, momento que precederia os lábios dele se fechando e, então, sugando o seu seio. "Já volto", disse ela, tentando disfarçar a respiração ofegante. Correu para o banheiro. Se olhava no espelho e fazia,um monólogo mental. De tanto se perguntar se estava maluca, reparando a umidade na sua calcinha, concluiu que só estava com tesão. Perto dele, quando não estavam conversando, ela sentia como se não fosse capaz de sentir coisas mais complexas: sentia-se toda desejo (puro e simples). Não havia percebido o quão complexo era viver a sua condição tão humana. Era lua cheia e ele a convidou para ir a mais um evento acadêmico. Pegaram o metrô. Conforme o vagão se abarrotava de gente, mais os dois encostavam um no outro. "Pode segurar em mim!", se disponibilizou para resgatá-la do desamparo de não alcançar nenhuma alça ou barra próxima. Ela aceitou, pondo sua mão plenamente aberta sobre o ombro dele, com os olhos vidrados e um movimento robótico para encobrir a estranheza dos olhos vidrados. A cada freada, em cada estação, um aperto nos ombros dele. Mal sabia ela que ele estava utilizando todo o seu poder de abstração para não empaudurecer por conta do seu toque, do seu decote e de todas as palavras e coisas que evitava para esconder o que queria realmente falar e fazer. Mais um dia no núcleo de pesquisa, sozinhos. Brigaram por algo, numa briga sem motivo aparente. "Você tá certa!"- ele não compreende, mas dá o braço a torcer. Com as sobrancelhas levantadas, ela se aproximou sussurrando "claro-queu-tô!" e, mordendo a orelha dele que sempre achou tão linda, sentou frente a ele na mesma cadeira, segurou seu queixo, olhou no fundo daquelas pupilas dilatadas e o beijou. Em resposta, ele abraçou o quadril dela contra o seu. Os quadris em um movimento cadenciado, a respiração abafada ecoando para dentro das gargantas nos beijos de boca aberta, os franzidos das roupas sendo amassadas ainda vestidas culminaram no orgasmo dela e na feição de deliciosa surpresa dele. Passos vindos do corredor os fizeram voar cada um para seu devido canto da sala e encenar trabalho sendo feito. "Por que esse silêncio? Vocês estão sempre debatendo algo!" - reclamava o colega, sem saber o imenso barulho que ela e ele ouviam no olhar do outro.

segunda-feira, 18 de maio de 2015

Conto do Alter Ego II

Quando sentou-se na poltrona, o fez com tanta força e peso que retirou quase todo ar que restava nela, entoando aquele barulho constrangedoramente atrativo de olhares zombeteiros dos outros clientes da coffeeshop. O pesar não era de fato de seu corpo, deveras mais esbelto pela má alimentação dos dias de feriado prolongado, mas da sua mente e dos seus suspiros carregados de ansiedade. Tentou aproveitar o ambiente de iluminação amena, o conforto da poltrona barulhenta e, assim, parecer mais relaxado em vez de correr o risco de assustar, com olhar paranóico, a quem viesse anotar o seu pedido. Por sorte, o rapaz sério e de poucas palavras veio atendê-lo, melhor do que a moça sorridente, positiva à la Polianna e que sempre exclamava elogios ao clima do dia , mesmo que estivesse um clima aborrecedor. Preferiu um capuccino com creme, algo pesado e doce, para desacelerar pensamentos desgovernados e ainda assim manter-se alerta para seu encontro. Ele iria encontrá-la. Não acreditava nisso ou não queria crer. Uma vez servido, comeu um pouco do creme antes de misturá-lo a bebida. Mais uma vez, num de seus devaneios bregas, ele idealizava os lábios dela macios e doces como aquele creme e, talvez, seus outros lábios fossem também como os da boca. Não queria crer que uma oportunidade de prová-los havia chegado. Passara anos escrevendo sobre tudo e todos, mas quando queria criar algo do nada, ela era sua inspiração para personagens enigmáticas e interessantes, fora de seu cotidiano monótono. Era a sua vizinha. Aquela que ostentava belos cactos nas janelas, ouvia ou cantava à capella os mais variados tipos musicais em volume alto, sorria para cada pessoa que a cumprimentava, e alguns dias se fechava em seu mundo, sem voz, apenas um choro audível no silêncio da madrugada. Ela mudou-se, no início da década para Curitiba, mas manteve contato. Na distância, os dois ficavam a vontade para conversar: ela lhe dava conselhos para que chegasse bem aos trinta e poucos anos e ele a lembrava do desprendimento imaturo dos vinte poucos. Foi quando ela o incentivou a publicar seus escritos, em vez de queimá-los na pia da cozinha. A partir dali, sua vida de programador ganhou um novo layout e a tal "vizinha" tornou-se sua heroína. Viveu um vida tranquila, com seus sucessos: era melhor programador do que escritor, mas ia bem nas duas coisas, além do bom relacionamento com as mulheres, principalmente, com a atual. Porém, num sábado a noite, antes de dormir, excepcionalmente sozinho, olhou para seu relógio, olhou para o teto, fechou os olhos... pensou nela. Levantou, foi à geladeira, abriu uma Heineken, bebeu olhando o Facebook e lá estava ela no seu Feed de Notícias, publicando alguma foto linda com alguma uma frase linda sobre o amor pelo marido. Decidiu tentar dormir novamente, apesar de se enroscar entre os lençóis e pensamentos. Até que cansou do cansaço. Acabou dormindo tarde e acordando tarde, no domingo. Não queria sair da cama. Havia pensado nela a noite toda e assim queria permanecer. Decidido, mandou uma mensagem para ela comentando como foi seu sono, como ele sempre quis que fosse realidade, como ela o inspirava. Para a surpresa dele, ela respondeu logo em seguida "Esses sonhos parecem muito bons. Vamos conversar sobre eles? Hoje estou por perto. Te encontro naquela cafeteria da Paulista, que você gosta.". Ele não acreditava. Quando estava na metade do capuccino, ela chegou. Tomando um expresso duplo, sem açúcar, ela lhe explicou, pacientemente, que o sonho dele era muito bom, mas sonhos são apenas sonhos e podem não passar de filmecos mentais de coisas misturadas: coisas do passado/presente/futuro, medos que são desejos e desejos que são medos; o que ele sonhou não era nada, a não ser, possivelmente, um tipo de presságio da visita dela, somado ao desejo de estar dormindo com a namorada que fora viajar. Ele concordou plenamente. "Meu Deus!Foi só um sonho! Sou muito bobo mesmo!". Gargalhou e pediu desculpas por aquilo tudo. No embalo dos risos ela o perdoou como uma boa amiga. Enquanto ele contava mais detalhes sobre a nova namorada e as mais recentes peripécias dos outros vizinhos, o marido dela chegou e não poderia ficar para pôr a conversa em dia, pois tinham pouco tempo para visitar parentes e ainda ir para o aeroporto. Os três se despediram e ela foi embora com um nó na garganta. Tudo o que ele disse naquela mensagem, era o que ela gostaria de ter lido tempos atrás. Porém, quando entrou no táxi, parecia fechar a porta de uma viagem a um sonho passado e, ao abraçar o marido sentiu-se abraçando o presente, o real agora, e sorria serenamente num momento pleno. Imagino que tenha sido assim. Sempre escreverei sobre ela.

quinta-feira, 16 de abril de 2015

Das tentativas de definir o indefinível

Amor tem sabor de sal e açúcar juntos, com algo de gosto peculiarmente divino: fechamos os olhos, respiramos mais fundo, no ímpeto de compreender o que está em nossa boca. Depois, engolimos, mas o gosto não passa. Não percebemos a digestão e mal nos damos conta de que  isso se estocará para sempre (ou só por muito tempo) em nosso corpo.

sexta-feira, 14 de fevereiro de 2014

Conto do Alter Ego

A dor de cotovelo o abateu mais ainda, naquele fim de semana. Descobriu que a ex estava de namorado novo. Queria amar alguém novamente ou pelo menos esquecer disso. Decidiu esquecer e saiu na busca de uma nova baladinha perto de casa, na verdade, qualquer uma delas seria nova: ficara metade de uma década sem ir a baladas, só indo em cineminha com a namorada que agora não lhe era mais nada, a não ser uma lembrança dolorida e vários tickets de cinema guardados na carteira. Lá se foi, noite a dentro. Preferiu não beber tanto, pois, pelo pouco hábito, ficaria tonto rápido. E ficou. O baque do álcool trouxe a boa ideia de dançar. À revelia do julgamento alheio, balançava o que podia, recordando de suas parcas referências coreográficas, que aprendeu vendo MTV, na virada do século. O último passo pombagiresco o deixou mais tonto do que esperava, quando parou em plena pista. A mística da night rendeu uma visão arrebatadora. O tempo parou, enquanto seu coração podia ser ouvido nas suas orelhas, pulsando acelerado. Então, ele a viu. A cada pulsação, um close em um detalhe dela, um novo movimento do corpo dela ali na pista. Os pés dele pareciam presos no cimento, até que alguém esbarra nele e ele esbarra nela. Ela ri e ele se sente aprisionado naqueles dentes que brilham ao piscar das luzes estroboscópicas. Ele se desconserta mais do que queria, pede desculpas, é respondido com um convite para voltar a dançar. Dança. Hipnotizado, esbarra nela outra vez. Quase pede desculpa por existir e se despede da moça. Dando as costas para ela, que não entende o porquê. Ele sente seus pés duvidarem da ação. Seu tronco desobedece sua fuga e se volta para ela. Ele desabafa dizendo "você é a mulher mais interessante e bonita que já vi. Parece que estou vendo uma estrela despontando sua nova luz no universo!". Ela acha graça, mais uma vez o deixa ofegante e decidido a ir embora. Agora seus pés estão envergonhados pelo dramalhão romântico que ele fez. Os pés se apressam para chegar em casa. Ainda bem que é bem pertinho. Chegando em casa, ele liberta os pés dos sapatos, joga o corpo no sofá, cobre o rosto com uma das almofadas e grita "SEU IDIOTA!". Suspirando, olha pro teto e resolve dormir, mas bateram na porta do seu apartamento. Surpreso, ele se levantou do sofá. Abrindo a porta, a cor do seu rosto sumiu. Era ela à porta, era a estrela de primeira grandeza que ele viu na pista de dança. Ela sorri e ele quase chora de felicidade. Antes que ele pudesse falar qualquer coisa, ela beija sua boca. Fechando os olhos, ele a ouve tocando o interruptor. Na luz apagada, sente suas roupas sendo retiradas, ouve as peças caindo no chão, em várias partes da sala. Quando se percebe nu, percebe também que ela se afastou. Passa a procurá-la no apartamento escuro e não demora a encontrar. Como um fantasma ela o chama para perto, se diverte quando ele tenta tocá-la e ela foge. Os dois brincando no escuro. Cansado de correr e esbarrar nos móveis, e ainda tonto do álcool, ele deita na cama e sente seu rosto tocado pelos lábios dela, sem notar que está sendo amarrado a seu leito. Perguntando se ela não acenderia a luz, ouve uma resposta sussurrada "Apenas sinta a minha existência. Eu sentirei a sua, dentro de mim. Quando você estiver no escuro, vai se lembrar de mim como o seu melhor pesadelo.". Disse isso achando graça. Pesadelo? Ele não deu muita atenção a isso naquele momento e naquela noite. A noite mais excitante de todas da sua não tão longa vida. O dia amanheceu, mas ele só acordou perto do almoço, quando ouviu o barulho irritante da panela de pressão industrial da vizinha carioca. Todo sábado, ela fazia feijoada para a família barulhenta. Ele levantou procurando quem o havia feito o homem mais realizado do planeta. Não tinha ninguém e nenhum recado. Como ela poderia ter saído assim? A porta do apartamento, que só fechava com chave, estava encostada apenas. Agora, ele era o homem mais sozinho no mundo. Olhava o relógio a cada 10 minutos, para ver se estava mais perto da noite chegar. Assim, ele poder ir para a tal baladinha encontrá-la outra vez. A noite chegou, mas foi em vão. Mesmo tendo chegado quando o estabelecimento abriu e saído quando fechou, quase de manhã, ele não encontrou quem esperava. Ficou uma semana inteira, outra semana e mais outra fazendo o mesmo, mas nenhum sinal dela. Passou a entender o que significava "melhor pesadelo". Era um pesadelo o risco de talvez ela nunca ter existido, de ele se sentir  tão sozinho ao ponto da sua mente produzir tudo o que ocorrera naquela noite. Acabou confessando para um amigo. O amigou o aconselhou a seguir em frente, mesmo assombrado, ele deveria seguir  com a vida. Se ela fosse de verdade, ele iria descobrir de alguma forma, mas era melhor não ficar perseguindo essa verdade. Ele resolveu seguir a vida tranquilamente. Adotou novos hábitos, passou a ir para o trabalho a pé, a frequentar os parques, se exercitar, às vezes ver o pôr-do-sol em vez de ir ao cinema. Começou a sentir-se mais à vontade falando com as pessoas, fazendo novas amizades no trabalho, até com as moças de lá. Sentia-se mais confiante e menos pirado naquele lindo pesadelo. Houve um dia em conseguiu terminar o trabalho bem mais cedo. Decidiu ir pra casa antes de fazer sua caminhada no Ibirapuera. Chegou em casa e estava um calor quase praiano naquela tarde, mas precisava evitar ligar seu ar-condicionado mais uma vez por causa da rinite e da conta luz. Abrindo a janela, ele sentiu o vento refrescante tocando seu rosto, também sentiu um perfume nesse vento. Era o perfume dela. Abriu os olhos de pânico. Estava alucinando outra vez? Foi quando a viu na janela do apartamento do outro prédio, em frente ao dele. Era uma mulher com o mesmo perfume que o daquela. Ela se parecia com seu melhor pesadelo, mas os cabelos estavam mais curtos, os olhos e a boca não estavam marcados de maquiagem. Parecia com ela. TINHA QUE SER ELA! Não pensou duas vezes e contou o número de apartamentos que dava até aquela janela. Saiu correndo porta afora, rua afora e o outro prédio adentro. Teve a sorte de o elevador estar no térreo e, sem paciência, apertou 20 vezes o botão do andar que verificou pela janela. TINHA QUE SER ELA! O elevador subia finalmente. Suas mãos suavam, ele nunca teve tanta certeza na vida. Conseguiu chegar no andar que queria. Não sabendo o apartamento da mulher da janela, bateu na porta de todos do andar e pedia desculpas, ofegante. Faltava um apartamento. Batendo na porta, ouve um "já vai!" e tenta lembrar como era a voz dela. Pensa nas possíveis perguntas a fazer e nas satisfações que ele achava ela lhe devia, mas, quando ela abre a porta, não consegue dizer palavra. Ela o vê ofegante e suado. Assustada, ela esbraveja "É você o vizinho da janela em frente da minha?! O que está havendo? Por que está aqui? Você me olhou estranho, parecia com medo de mim e agora está aqui na minha porta? É algum psicopata? O que você quer?". Ela perguntava de forma firme e imperativa. Nervoso, ele cai na gargalhada dizendo "Não, não! Meu! Não sou nenhum maníaco! Desculpa pelo susto! Agora que percebi que fui sem noção! Desculpa pela doidera!". Ela sorriu, ainda sem entender a situação. Ele lembrou daquele sorriso. Era ela. Agora, ele tinha mais do que certeza. Depois de buscar deixar a moça sentir-se segura, ele engoliu todas as perguntas rígidas que pensou fazer. Ele a convida para tomar café e caminhar no parque, ela aceita, eles marcam, trocam telefones. Ele passou a não pensar tanto em querer saber se aquela mulher, que arrebatou sua alma naquela noite, era essa na sua frente, ainda mais encantadora como pessoa, e não como fantasma. Passaram a sair juntos algumas tardes, conversando sobre tudo da vida e do mundo. No entanto, quando chegar o dia em que passarão a noite juntos, ele saberá, enfim, a verdade, se o seu melhor pesadelo era real ou não. A permanente dúvida dele é fruto de uma das minhas melhores travessuras. Tem um gosto muito bom na minha língua. Ele pode esperar ansioso por ter aquela noite de volta, mas eu decido se me revelarei a ele outra vez. Permaneço como o vazio da lua escura, que, luzente noutros dias, se esconde entre as nuvens frias da noite paulistana.

quarta-feira, 8 de janeiro de 2014

Desabafo exorcizante

É preciso exorcizar o medo.
Para as crianças há filmes, quadrinhos e afins que ensinam que o "monstro do medo" só está forte e grande porque estão sentindo medo e é preciso usar a coragem pra enfrentá-lo. Para os adultos, na Academia, autores nos dizem que a cultura do medo torna a violência muito maior simbolicamente do que ela é de fato, isto é, além da violência de fato, é preciso combater a cultura do medo tão facilmente veiculada pelo mídia. Na nossa Rio de Janeiro temos medos variados, muitos deles relacionados aos conflitos entre o tráfico de drogas e a "polícia", muitos inventados ou exagerados, outros bem possíveis e reais. Eu preciso exorcizar UM medo: o do estupro.

Nós mulheres, ainda que não digamos para alguém, já sentimos ou sentiremos medo de sermos estupradas.
Um olhar estranho, uma aproximação brusca podem ser interpretados como algo que representa um possível perigo. Infelizmente, não é uma "frescura" nossa. Nem mesmo é porque nos achamos irresistíveis: pr'além do Rio, em todo o Brasil, uma mulher é estuprada a cada 12 segundos. Esses dados são baseados, entre outras coisas, nos boletins de ocorrência, isto é, há risco do índice ser maior, uma vez que muitas vítimas ainda não conseguem fazer o registro/denúncia. Visto isso, temos um medo legítimo dessa coisa que é uma das encarnações do machismo. Sim, o machismo: aquele que faz as pessoas acharem graça em piadas com estupro, ou piadas de loiras.... ou aquele que faz as pessoas acharem que há um padrão de corpo feminino e um padrão de comportamento feminino e tudo que saia desse padrão merece ser rechaçado e depreciado.

No ensino médio, lembro-me que as meninas que "não eram" virgens sentiam medo de serem estupradas exatamente por isso, porque poderiam pensar que elas seriam "fáceis"; e as virgens tinham medo de serem estupradas ainda virgens ou de morrerem virgens e terem seus corpos violados no IML. Confabulávamos sobre possíveis reações a tentativas de estupro. Nossas mães, avós e tias nos instruíam dos "modus operandi" de sequestradores/estupradores: "carro andando devagar perto de você; homem que está há muito tempo andando pelo mesmo caminho atrás de você etc."; nos imprimindo a imagem do "homem como agressor constante"...ah é, isso também é machismo, mas como condenar as mulheres por essa postura machista (a de colocar qualquer homem  como possível agressor) se para elas o estupro é um risco iminente?

Estamos na segunda década do século XXI e ainda está tudo bem acharem mais normal que meninas não aprendam ballet em vez de (ou também) judô; ainda está tudo bem ensinarem que há as mulheres fáceis e as não fáceis e que se acharem que ela é fácil (por causa da sua roupa, p.ex.), estará mais exposta ao estupro; ainda está tudo bem que meninos aprendam a mesma coisa sobre as meninas fáceis e não fáceis; ainda está tudo bem ensinarem às meninas que sejam dóceis e amenas, como característica do feminino; ainda está tudo bem um professor universitário desejar que uma mulher (no caso uma jornalista) seja estuprada como punição por fala que ela que ele não gostou.

Recentemente, sofri uma tentativa de... sei lá o que. Dentro de um ônibus praticamente vazio, um homem sacou um facão de açougueiro e, em vez de roubar as minhas coisas (o que teria feito fácil e ligeiro), mandou-me ir para o canto do banco no qual eu estava sentada. A educação a qual fui submetida diria para eu obedecer a ordem que me fora dada, mas meu corpo todo disse "NÃO!". Eu simplesmente corri dentro do ônibus com o objetivo de pular a catraca, sair pela porta e correr mais. O homem chegou a vir até o meio do ônibus, porém, desistiu da ação. Sem entender o que havia, o motorista abriu a porta e fechou ao meu comando, liberando o mal intencionado. No fim das contas, minha mente repassou o momento várias vezes. Pensando no "e se", é provável que a ação fosse uma tentativa de sequestro/estupro, já que o homem não se deu o trabalho de levar minhas coisas. Essa possibilidade é MUITO incômoda. Quer saber? Acho que preferiria que ele roubasse minhas coisas.




segunda-feira, 26 de agosto de 2013

Delírio Urbano

Avenida Brasil. Sábado à noite. Ônibus lotado. Como peguei o ônibus no ponto final, tenho o privilégio de estar sentada. A moça grávida adentra o corredor esquivando o seu ventre dos braços, pernas, cotovelos, joelhos do povo que espera alguma coisa de um sábado a noite. E esse povo era bem diverso: de piriguete a mulher valorosa de oração, de profeta a malandro... também deveria ter alguém que fosse o misto desses extremos. De qualquer forma, tipo, tamanho ou vestimenta, nenhuma das pessoas sentadas se levantou para a gestante descansar. Em vez de deixar a responsabilidade para alguém, minha consciência pesou mais do que o cansaço de fim do dia, já me levantava para ela sentar. Então, subitamente, no corredor, bem ao meu lado, um homem, branco, barbudo, de jaqueta bege, olhar dilatado e brilhante resmungou para a grávida "Só me mexi para te dar passagem. Não te dei meu lugar no ônibus!". Lá se foi a minha chance de conseguir dar meu lugar para ela. Além de perder a caridade, ganhei um colega de viagem desagradável. O senhor ao meu lado conversava tranquilamente com a esposa ao telefone e eu pensava na lamentável morte do Bezerra da Silva, quando mais o barbudo nos regalou com mais uma surpresa: "PELA SACOS!PELAS SACO! ....". Esses gritos se deram por três vezes, quando então ele esbravejou emblematicamente "Seus pelas sacos! Daqui a meia hora vai haver uma epidemia de dor de cabeça aqui!Suas cabeças vão queimar!Explodir!!!!!". Pronto, o verme da neurose consumiu meu cérebro e eu tive a certeza de que aquele cara maluco iria explodir o ônibus com aquela gente toda dentro. Pelo menos a moça grávida já havia descido. Mentalmente traçava as possíveis rotas de fuga, manobras, posições que faria caso o tal barbudo sacasse uma faca, ou uma arma, ou uma bomba. Enquanto eu pensava a melhor forma de pular a janela, o maluco foi embora e me deixou com minhas maluquices urbanas. Não era bomba nem nada. Quando cheguei em casa vi que o problema foi mesmo a TPM.

terça-feira, 30 de julho de 2013

Ícaros

Soprou-lhes vida,
acordou-os de um sono errante
e disse
"Ide e vá. Sejais como pássaros a gorjear por todos os cantos. Os pássaros confiam em mim. Que o vosso canto acorde quem jaz a viver na terra".
Todavia
desejaram alçar voos mais elevados: o som do seu canto não alcançava chão,
voavam para o alto sem chegar a parte alguma.
E por tanta altura, o Sol os cegou, o vento despetalou suas penas.
Ouviu-se som, não de canto, mas da queda.
Depenados e frágeis filhotes a murmurar piados tristes.
Resta-lhes ou arriscar a morte de pular ou ficar aninhados
e confiar na provisão daqu'Ele que dá A vida.

(Sobre o povo que recusou a palavra d'Ele dada ao profeta Jeremias)
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# IFES
#ABUB
#CFLeste2013
#PrantoDenunciaEsperança

quarta-feira, 2 de janeiro de 2013

A Dança das Luzes

Restavam dois minutos. 
Em meio a euforia do brinde derradeiro, me aquietei para falar exclusivamente com Deus. Agradeci, com sinceridade, pelas alegrias e tristezas que tive, pedi que Ele me ajudasse a crescer com todas elas e perdão quando não fui grata e não compartilhei as alegrias e quando simplesmente reclamei das tristezas. Não ousei pronunciar as palavras, senão em pensamento. Mesmo assim, a oração era mais sonora do que toda gente a minha volta. 
E então um beijo disse amém e pareceu abrir uma fissura no espaço e no tempo. Esse homem lindo me beijava e sussurrou no meu ouvido "feliz ano novo...". Num abraço, abri os olhos, vi e ouvi um estrondo atrás de estrondo descompassado que acordava meu coração e gritava "acabou um ano", enquanto as luzes no céu respondiam "começou um novo". 
As explosões cessaram, o silêncio e o zumbido nos ouvidos fizeram meu estômago entender finalmente o que acontecera e o que está por vir: mais um ano da minha vida.

terça-feira, 30 de outubro de 2012

Momento Lugar

- "Temo algo que nem sei, me proteja!"- Pedia franzindo a testa, com sobrancelhas arqueadas e juntas em súplica. -"Está bem. Venha cá." - Ouviu em resposta.
Fechou os olhos, escondeu o rosto entre os seios dela e se pôs quieto como morto, ou como um beija-flor que ao dormir parece morrer. Ela o abraçou calma e fortemente, sentindo a inquietude temerosa se aquietar e dar lugar a paz.

Vingança Perdida


Ao saber que uma mulher conceberia o Salvador, Satanás envenenou os corações dos homens contra as mulheres. Com a opressão, desejou mantê-las vivas, mas vivas-mortas, e subtraía voz, visão e desejo de todas.

Desapercebeu a benção, que pensara ser maldição: as mulheres se uniam em seu sangue, morriam e logo pariam a si mesmas. 


Um dia a mulher se fez de morada e portal do divino Salvador e este, que deu voz aos mudos, visão aos cegos e desejo aos inertes, deixou-se oprimir pela mão do homem ordenada por corações envenenados. Semelhante à mulher, deixou-se oprimir no seu sangue, morreu e pariu-se, para que todas as mulheres e os homens também pudessem ser morada d'Ele e pari-lO ao se unirem, revivendo-O entre si.


E assim foi a prévia vingança do Anjo Caído que se arma e se frustra na trama atemporal.