"Vida"- Ballet Stagium - foto: Emídio Luisi

sexta-feira, 14 de fevereiro de 2014

Conto do Alter Ego

A dor de cotovelo o abateu mais ainda, naquele fim de semana. Descobriu que a ex estava de namorado novo. Queria amar alguém novamente ou pelo menos esquecer disso. Decidiu esquecer e saiu na busca de uma nova baladinha perto de casa, na verdade, qualquer uma delas seria nova: ficara metade de uma década sem ir a baladas, só indo em cineminha com a namorada que agora não lhe era mais nada, a não ser uma lembrança dolorida e vários tickets de cinema guardados na carteira. Lá se foi, noite a dentro. Preferiu não beber tanto, pois, pelo pouco hábito, ficaria tonto rápido. E ficou. O baque do álcool trouxe a boa ideia de dançar. À revelia do julgamento alheio, balançava o que podia, recordando de suas parcas referências coreográficas, que aprendeu vendo MTV, na virada do século. O último passo pombagiresco o deixou mais tonto do que esperava, quando parou em plena pista. A mística da night rendeu uma visão arrebatadora. O tempo parou, enquanto seu coração podia ser ouvido nas suas orelhas, pulsando acelerado. Então, ele a viu. A cada pulsação, um close em um detalhe dela, um novo movimento do corpo dela ali na pista. Os pés dele pareciam presos no cimento, até que alguém esbarra nele e ele esbarra nela. Ela ri e ele se sente aprisionado naqueles dentes que brilham ao piscar das luzes estroboscópicas. Ele se desconserta mais do que queria, pede desculpas, é respondido com um convite para voltar a dançar. Dança. Hipnotizado, esbarra nela outra vez. Quase pede desculpa por existir e se despede da moça. Dando as costas para ela, que não entende o porquê. Ele sente seus pés duvidarem da ação. Seu tronco desobedece sua fuga e se volta para ela. Ele desabafa dizendo "você é a mulher mais interessante e bonita que já vi. Parece que estou vendo uma estrela despontando sua nova luz no universo!". Ela acha graça, mais uma vez o deixa ofegante e decidido a ir embora. Agora seus pés estão envergonhados pelo dramalhão romântico que ele fez. Os pés se apressam para chegar em casa. Ainda bem que é bem pertinho. Chegando em casa, ele liberta os pés dos sapatos, joga o corpo no sofá, cobre o rosto com uma das almofadas e grita "SEU IDIOTA!". Suspirando, olha pro teto e resolve dormir, mas bateram na porta do seu apartamento. Surpreso, ele se levantou do sofá. Abrindo a porta, a cor do seu rosto sumiu. Era ela à porta, era a estrela de primeira grandeza que ele viu na pista de dança. Ela sorri e ele quase chora de felicidade. Antes que ele pudesse falar qualquer coisa, ela beija sua boca. Fechando os olhos, ele a ouve tocando o interruptor. Na luz apagada, sente suas roupas sendo retiradas, ouve as peças caindo no chão, em várias partes da sala. Quando se percebe nu, percebe também que ela se afastou. Passa a procurá-la no apartamento escuro e não demora a encontrar. Como um fantasma ela o chama para perto, se diverte quando ele tenta tocá-la e ela foge. Os dois brincando no escuro. Cansado de correr e esbarrar nos móveis, e ainda tonto do álcool, ele deita na cama e sente seu rosto tocado pelos lábios dela, sem notar que está sendo amarrado a seu leito. Perguntando se ela não acenderia a luz, ouve uma resposta sussurrada "Apenas sinta a minha existência. Eu sentirei a sua, dentro de mim. Quando você estiver no escuro, vai se lembrar de mim como o seu melhor pesadelo.". Disse isso achando graça. Pesadelo? Ele não deu muita atenção a isso naquele momento e naquela noite. A noite mais excitante de todas da sua não tão longa vida. O dia amanheceu, mas ele só acordou perto do almoço, quando ouviu o barulho irritante da panela de pressão industrial da vizinha carioca. Todo sábado, ela fazia feijoada para a família barulhenta. Ele levantou procurando quem o havia feito o homem mais realizado do planeta. Não tinha ninguém e nenhum recado. Como ela poderia ter saído assim? A porta do apartamento, que só fechava com chave, estava encostada apenas. Agora, ele era o homem mais sozinho no mundo. Olhava o relógio a cada 10 minutos, para ver se estava mais perto da noite chegar. Assim, ele poder ir para a tal baladinha encontrá-la outra vez. A noite chegou, mas foi em vão. Mesmo tendo chegado quando o estabelecimento abriu e saído quando fechou, quase de manhã, ele não encontrou quem esperava. Ficou uma semana inteira, outra semana e mais outra fazendo o mesmo, mas nenhum sinal dela. Passou a entender o que significava "melhor pesadelo". Era um pesadelo o risco de talvez ela nunca ter existido, de ele se sentir  tão sozinho ao ponto da sua mente produzir tudo o que ocorrera naquela noite. Acabou confessando para um amigo. O amigou o aconselhou a seguir em frente, mesmo assombrado, ele deveria seguir  com a vida. Se ela fosse de verdade, ele iria descobrir de alguma forma, mas era melhor não ficar perseguindo essa verdade. Ele resolveu seguir a vida tranquilamente. Adotou novos hábitos, passou a ir para o trabalho a pé, a frequentar os parques, se exercitar, às vezes ver o pôr-do-sol em vez de ir ao cinema. Começou a sentir-se mais à vontade falando com as pessoas, fazendo novas amizades no trabalho, até com as moças de lá. Sentia-se mais confiante e menos pirado naquele lindo pesadelo. Houve um dia em conseguiu terminar o trabalho bem mais cedo. Decidiu ir pra casa antes de fazer sua caminhada no Ibirapuera. Chegou em casa e estava um calor quase praiano naquela tarde, mas precisava evitar ligar seu ar-condicionado mais uma vez por causa da rinite e da conta luz. Abrindo a janela, ele sentiu o vento refrescante tocando seu rosto, também sentiu um perfume nesse vento. Era o perfume dela. Abriu os olhos de pânico. Estava alucinando outra vez? Foi quando a viu na janela do apartamento do outro prédio, em frente ao dele. Era uma mulher com o mesmo perfume que o daquela. Ela se parecia com seu melhor pesadelo, mas os cabelos estavam mais curtos, os olhos e a boca não estavam marcados de maquiagem. Parecia com ela. TINHA QUE SER ELA! Não pensou duas vezes e contou o número de apartamentos que dava até aquela janela. Saiu correndo porta afora, rua afora e o outro prédio adentro. Teve a sorte de o elevador estar no térreo e, sem paciência, apertou 20 vezes o botão do andar que verificou pela janela. TINHA QUE SER ELA! O elevador subia finalmente. Suas mãos suavam, ele nunca teve tanta certeza na vida. Conseguiu chegar no andar que queria. Não sabendo o apartamento da mulher da janela, bateu na porta de todos do andar e pedia desculpas, ofegante. Faltava um apartamento. Batendo na porta, ouve um "já vai!" e tenta lembrar como era a voz dela. Pensa nas possíveis perguntas a fazer e nas satisfações que ele achava ela lhe devia, mas, quando ela abre a porta, não consegue dizer palavra. Ela o vê ofegante e suado. Assustada, ela esbraveja "É você o vizinho da janela em frente da minha?! O que está havendo? Por que está aqui? Você me olhou estranho, parecia com medo de mim e agora está aqui na minha porta? É algum psicopata? O que você quer?". Ela perguntava de forma firme e imperativa. Nervoso, ele cai na gargalhada dizendo "Não, não! Meu! Não sou nenhum maníaco! Desculpa pelo susto! Agora que percebi que fui sem noção! Desculpa pela doidera!". Ela sorriu, ainda sem entender a situação. Ele lembrou daquele sorriso. Era ela. Agora, ele tinha mais do que certeza. Depois de buscar deixar a moça sentir-se segura, ele engoliu todas as perguntas rígidas que pensou fazer. Ele a convida para tomar café e caminhar no parque, ela aceita, eles marcam, trocam telefones. Ele passou a não pensar tanto em querer saber se aquela mulher, que arrebatou sua alma naquela noite, era essa na sua frente, ainda mais encantadora como pessoa, e não como fantasma. Passaram a sair juntos algumas tardes, conversando sobre tudo da vida e do mundo. No entanto, quando chegar o dia em que passarão a noite juntos, ele saberá, enfim, a verdade, se o seu melhor pesadelo era real ou não. A permanente dúvida dele é fruto de uma das minhas melhores travessuras. Tem um gosto muito bom na minha língua. Ele pode esperar ansioso por ter aquela noite de volta, mas eu decido se me revelarei a ele outra vez. Permaneço como o vazio da lua escura, que, luzente noutros dias, se esconde entre as nuvens frias da noite paulistana.

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