Enterro é uma palavra evocante de diversas, porém sinônimas, outras palavras na mente. Já fui a poucos enterros: daria para contá-los entre cinco dedos. Pude presenciar enterro de gente que viveu pouco, também de gente que viveu muito e também de gente que viveu tempo suficiente- se é que possível mensurar o tempo da vida e a intensidade com que foi vivida. Também já chorei a vida de quem não veio ao mundo para tê-la vivido.
O primeiro enterro que presenciei foi quando eu, muito criança, era levada pela minha avó a todos os lugares. Cuidadora de mim e dos outros, a mãe de minha mãe sempre foi solicitada e solícita. Lembro que um dia, ao voltar da escola, ela e meu avô apressavam-se para sair: morrera um homem de uma das igrejas conhecidas da minha família, ou seja, "o irmão fulano de tal morreu, vamos ao enterro dele"- vovó me disse. Com pouco tempo para irmos, me mandaram vestir a roupa rosa, que naquele momento era minha roupa mais apresentável. Resisti bastante a isto, pois aprendia com novelas e desenhos animados que num funeral deve-se vestir preto.
Lá estava eu, de Vaz Lobo ao Cemitério do Caju, com uma roupa rosa choque gritante anos 90! Chegando lá, as coisas não melhoraram. Muitas gente, gente chorando, gente rindo, gente cantando desafinado, gente orando, gente lamentando, gente me comparando às minhas tias, gente saudando meu saudante avô, gente solicitando minha avó e, eu com aquela roupa rosa ridícula no meio da multidão fúnebre de tons neutros, escuros e pastéis. Esse, foi o sepultamento de uma pessoa que, provavelmente, viveu o suficiente. Depois dele, jurei que nunca mais iria noutro, nem no meu.
Tempos passados, e enterros evitados. Veio o dia em que alguém próximo, de idade próxima, partiu. Assim, sem mais nem menos. Notícia súbita. Então me chega um enterro de alguém que viveu pouco. Descumpri minha jura de descomparecer em funerais. "Amigos também servem para chorar a partida", pensei. Desta vez, pude vestir cores sóbrias. Na minha vida, nada me pareceu mais fora do lugar ver os pais empurrando o caixão de um filho. Não havia pessoa que abrisse um sorriso, como também as nuvens não abriram alas para o Sol, naquele dia. E naquele ano, muitos dias lembravam esse, desafiando-me a mensurar a intensidade da vida.
Dias e meses idos, alguns centímetros da estatura da maturidade alcançados, convidaram-se para um enterro de ilustre senhora. Senhora de muitos e de grande sabedoria, que guiara irmãos, filhos, netos para a sua fé; vivera muito. Viveu muito, não porque é demasia viver muito, mas porque viveu muito: seus mais de cem anos eram prova disto. Pessoas tristes, mas com dor da saudade e não a dor do algo mais que se poderia ter vivido. Pessoas com saudade, mas satisfeitas de poderem realizar o sepultamento de quem amavam, em vez de não saberem onde derramar as lágrimas, nem terem um corpo para gritar para ele "volta!volta!", como foi com outros membros daquela família. No momento do enterro de fato, me perguntava onde estavam as flores: "as pedras não murcham", me disseram.
A cada pessoa que vai, penso em como fico por aqui, como vivo, viverei; como será a despedida. Desejo que, na hora da minha não hora, meu corpo, ou minhas cinzas, ou o que sobrar, seja enterrado longe da cidade e, que se plante um Ipê Roxo em cima de mim (estarei eu fazendo parte da terra, enterrada). Também desejo que o velório seja marcado para o dia em que a árvore florescer. Mais uma vez haverá alguém exibindo a cor rosa choque gritante para rirem do que foi vergonha, mas celebrarem vida.
Para Lévinas, ter de responder de seu direito de ser não se refere à abstração de qualquer lei anônima ou entidade jurídica, mas se dá no temor por outrem, isto é, temor por tudo o que o meu existir pode realizar de violência e assassínio, temor que me vem do rosto de outrem, de sua mortalidade. A morte do outro homem, que ele mesmo não pode ver, me coloca em questão, me tornando, em certo sentido, cúmplice de sua morte. A mortalidade de outrem me chama à responsabilidade e é neste sentido que se dá a proximidade do outro (LÉVINAS, 1998, p. 93). Esta responsabilidade da qual fala Lévinas está para além do que eu posso ter cometido ou não em relação a outrem, ela se dá como se eu me dedicasse ao outro homem antes de me dedicar a mim mesmo ou como se eu tivesse que responder da morte do outro antes de ter que ser (LÉVINAS, 1998, pp. 97-98). “A proibição de matar – o ‘tu não matarás’ em que, diz ele [Lévinas], se concentra ‘toda a Torá’ e ‘que é significado pelo rosto do outro’ – é a origem da ética para Lévinas”, escreve Derrida (2008, p. 110). Para Lévinas (1998, p. 98): “a responsabilidade pelo próximo é antes da minha liberdade num passado imemorial – não representável, num passado que não fora jamais presente – mais antigo que toda consciência de...”. Trata-se de uma “responsabilidade pelo próximo, pelo outro homem, pelo estrangeiro” sem culpabilidade e que não é obrigada por nada, isto é, que não apresenta uma causalidade por detrás. Esta responsabilidade é an-árquica, sem origem, refere-se a uma liberdade imemorial mais antiga que o ser, a decisão e os atos.
ResponderExcluir[trecho de um artigo meu inédito...]
Celebre a vida e esqueça da morte.
ResponderExcluirna verdade, o Mestre disse ser melhor estar num enterro do que numa festa!
ResponderExcluiresquecer da morte nos traz sofrimento quando ela chega. A morte também faz parte da vida.
Eu amei ler seu texto! Que precioso...profundo, vivo, denso, verdadeiro, tocante, reflexivo e muito feliz no que você propõe para refletir com seu leitor....Parabéns!! beijos, Daniela Frozi
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